Governo paulista reconhece que seu carro-chefe da segurança pública operou sem decreto por um ano e meio
A plataforma Córtex, o poderoso banco de dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) capaz de seguir carros e pessoas sem que precise dizer a motivação, foi o embrião do projeto Muralha Paulista, usado pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), como carro-chefe do seu governo na área de segurança pública. Ambas as ferramentas recebem e dão acesso a imagens captadas em tempo real por câmeras espalhadas em lugares públicos e a bases de dados sensíveis dos cidadãos, permitindo consultas a informações sigilosas sem autorização judicial.
A Agência Pública descobriu que o Muralha Paulista funcionou por mais de um ano e meio sem um decreto regulador. Sem isso, agentes com acesso ao sistema não tinham limites definidos quanto ao que podiam fazer ou não; não havia definições sobre o destino e o tratamento dos dados e imagens coletadas via Muralha; também não existiam parâmetros para auditorias sobre o uso das ferramentas integradas ao sistema.
Uma intimação publicada no Diário Oficial do Estado no último dia 2 de setembro mostra que o Muralha foi usado por agentes da Polícia Militar de São Paulo antes da existência de um decreto regulador – publicado pelo governo Tarcísio somente dias depois, em 5 de setembro, após a reportagem ter perguntado à Secretaria de Segurança Pública (SSP) sobre a existência do decreto e das normas que regiam o uso do Muralha.
O decreto mostra que o governo Tarcísio não definiu como as auditorias do sistema serão feitas, estabelecendo apenas que a SSP será responsável por “definir e padronizar os relatórios de auditoria” – sem prazos para que isso seja realizado. Além disso, o decreto ordena que todos os novos contratos para “concessões e parcerias público-privadas celebradas após a instituição do Programa Muralha Paulista” pelo governo Tarcísio terão, como dever, a “integração das câmeras de videomonitoramento das concessionárias” ao sistema de vigilância.
O Muralha Paulista teve acesso a uma verba milionária enquanto operava sem decreto. Em 22 de julho último, o sistema recebeu do governo Tarcísio cerca de R$ 30 milhões em créditos para conduzir suas atividades. Naquele mês, R$ 14,6 milhões desses recursos foram destinados para a prorrogação de “serviços de empresa especializada para a solução integrada de captação, armazenamento, transmissão, custódia e gestão de evidências digitais por câmeras operacionais portáteis nas atividades policiais”. Segundo o Diário Oficial, o custo mensal desse serviço é de aproximadamente R$ 4,9 milhões.
POR QUE ISSO IMPORTA?
Córtex e Muralha Paulista dão acesso a imagens captadas em tempo real por câmeras espalhadas em lugares públicos e a bases de dados sensíveis dos cidadãos, permitindo consultas a informações sigilosas sem autorização judicial.
Governo paulista reconhece que seu carro-chefe da segurança pública operou sem decreto por um ano e meio.
“Me parece que existe uma frustração de expectativa e uma desconfiança dos cidadãos em relação ao Estado, na medida em que dados pessoais são coletados para um uso legítimo, mas que, no fim das contas, podem ser utilizados de modo indevido, ilegítimo. Usa-se uma espécie de ‘máscara’ de legitimidade para a coleta de dados, mas isso abre brechas para vigilância constante, desrespeitando a presunção de inocência”, afirmou André Ramiro, pesquisador especialista em privacidade, segurança e proteção de dados da Universidade Stanford (EUA), que falou sobre o assunto com a Pública antes da publicação do decreto pelo governo Tarcísio.
“A sociedade tem de estabelecer as regras para a integração de bases de dados sensíveis, sabendo qual a finalidade da integração dos dados e quem de fato pode fazer uso de ferramentas como o Córtex e a Muralha Paulista”, disse ainda Ramiro.
Por – Caio de Freitas, Rubens Valente
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